Alice da Costa Uchôa (1) A trajetória da saúde coletiva é bastante recente e confunde-se, muitas vezes, com a trajetória de outros movimentos relativos à saúde no Brasil, como a Medicina Preventiva, a Medicina Social e mesmo a Saúde Pública. Mas existem diferenças substantivass entre esses movimentos que precisam ser detalhados para uma melhor compreensão desse campo que se constituiu a partir dos anos 70. Estamos assumindo, portanto, o pressuposto que a saúde coletiva se propôs diferenciada das demais formas de pensar o processo saúde-doença, mas não que tenha rompido ou criado uma nova forma de atuar, apenas que surgiu como um campo crítico ao processo saúde-doença tal como vinha sendo abordado. É bastante significativa a constatação da Saúde Coletiva ser um campo em constituição marcado por tensões de natureza epistemológica, institucionais e de relações de poder. Estas se dariam em decorrência da difícil demarcação de fronteiras entre o conjunto muito amplo e heterogêneo de disciplinas - Ciências Humanas e Sociais, Ciências Administrativas e Econômicas, Planejamento em Saúde, Ecologia e Saúde Ambiental, Epidemiologia.
A saúde coletiva não apenas foi gestada a partir de vários movimentos reformadores da área de saúde, mas também, desde seu nascimento “ não se identificava apenas pela explicitação de seus principais pressupostos teóricos — a determinação social da saúde e das práticas de saúde — que supostamente deveriam orientar a produção do conhecimento. Pensava-se que a política de saúde hegemônica, assim como os modelos de práticas de saúde e de organização de serviços que aquelas políticas privilegiavam, estavam embasadas em abordagens reducionistas. Exatamente por isso, se pretendia que os conhecimentos da nascente saúde coletiva poderiam servir de base para políticas melhores. Ou seja, as instituições que atuavam na saúde coletiva engajaram-se na produção de um conhecimento apresentado como novo, e apresentado como tendo uma maior capacidade para orientar políticos e gestores na área da saúde” A idéia de prevenção às doenças, com o reconhecimento de que agentes etiológicos específicos transmitem algumas doenças e que o ambiente reproduz e distribui as mesmas, fundamentou a base da medicina científica contemporânea e possibilitou um conjunto de práticas organizadas de controle do ambiente, dos agentes etiológicos e do próprio homem. No Brasil, a saúde pública é também constituída adotando as bases conceituais do cientificismo biologicista. As estratégias da saúde pública, seja nas práticas instituídas por Oswaldo Cruz (início do século XX), durante a Reforma Carlos Chagas (anos 20), nas ações da Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública - até os anos 40), nas propostas do sanitarismo desenvolvimentista (anos 50-60), ou na atuação da FUNASA na atualidade, guardam uma semelhança na forma de compreensão do processo saúde-doença, pautado na relação causal e determinista das doenças. Essa compreensão determina ações de saúde que buscam insistentemente o controle da realidade, utilizando-se do conhecimento técnico, da racionalização e do planejamento como ferramentas para resolver os problemas de saúde das comunidades. Da mesma forma, a Medicina Preventiva, a Medicina Integral e Comunitária, que surgiram nos anos 50 e 60, no Brasil, com críticas a atuação da medicina, não romperam com o pressuposto biologicista básico da medicina moderna, mas buscaram outras formas de atuar no contexto da prática médica, apontando para uma multicausalidade das doenças (o modelo da história natural das doenças), para a integralidade do cuidado e para uma visão dinâmica acerca do desenvolvimento da doença.. Os Departamentos de Medicina Preventiva e Social, Medicina Integral e Saúde Comunitária surgiram nessas décadas (50/60), compondo um conjunto de instituições interessadas na discussão do processo saúde-doença, e que mais tarde constituiriam o chamado campo da saúde coletiva. Mas já nos anos 60 surgiam as primeiras críticas sistemáticas à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (no seu momento desenvolvimentista), apontando dois grupos de problemas: as desigualdades sociais e de saúde presentes na sociedade brasileira, com a incapacidade das ações de saúde para resolver os problemas apresentados; e o elevado preço pago pelo setor na prática de uma medicina baseada na doença, e que trazia poucos resultados concretos no bem-estar da população (o fenômeno conhecido como “inflação médica”). Os anos 70 foram extremamente produtivos nas críticas ao sistema. Como apontou Paim (1982), após a reforma universitária de 1968, há uma ampliação dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social, permitindo um impulso na criação dos cursos de pós-graduação stricto sensu e, a ampliação de uma base institucional e pensante sobre o sistema. A partir de 1974, esse impulso foi ainda maior com o financiamento de pesquisas e com a demanda de recursos humanos em saúde coletiva, principalmente para atuarem nas políticas sociais que começavam a ser desenhadas para o setor – como o PIASS (Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento), o PPA (Programa de Pronta Ação) e outras, reflexos do movimento de reformulação interno e externo. Em 1974, a proposta da Promoção da Saúde foi lançada pelo Relatório Lalonde, Canadá, servindo de base para a ampliação dos serviços e ações comunitárias, através de uma medicina simplificada, mas socializada, propondo-se a combater os problemas de saúde da parcela mais pobre da população. Ressaltando a melhor relação custo-efetividade das intervenções sobre os estilos de vida e sobre o meio ambiente quando comparada à atenção curativa pelos serviços de saúde. Mais do que representar um marco teórico para o campo da Saúde Pública, o Informe Lalonde pode ser reconhecido como um marco político-institucional da “Promoção da Saúde“, ao vinculá-la diretamente ao processo de organização das políticas públicas. No fim da década de 60 e começo da década de 70, vários autores começaram a discutir o caráter ideológico da prática médica considerando-a iatrogênica e apontando a ampliação da atuação médica sobre as condutas humanas, a “medicalização A crise do modelo político propiciava uma abordagem que possibilitasse a apreensão das diferenças sociais e econômicas e os conflitos que delas derivavam. Estas preocupações foram sintetizadas num documento elaborado na Reunião de Cuenca, no México, em 1972. Esta reunião tinha entre seus objetivos destacar a importância e a necessidade de incorporar os conteúdos sociais na educação médica(Mercer, 1985). Em 1978, a Conferência de Alma-Ata, promovida pelos ministérios de Saúde das Américas, consagrou a atenção primária como condição essencial para se alcançar o objetivo de "Saúde Para Todos no Ano 2000", definindo como prioritárias as ações comunitárias de baixo custo e de forte impacto sobre os problemas sociais. A atenção primária e a promoção da saúde foram propostas alternativas ao modelo de assistência médico-sanitária de caráter individual e curativo. Suas concepções e princípios visavam redirecionar o modelo assistencial, no sentido de apreender a complexidade do processo saúde-doença, determinado por forças sociais, econômicas, políticas, culturais, biológicas, tecnológicas, etc. A partir de 1991 incorpora o desenvolvimento econômico e social sustentado como pauta extra-setorial para o campo da saúde. O objeto e a prática da Medicina Social é o envolvimento das questões no âmbito das ciências biológicas e sociais, incluindo em seus estudos determinação social da produção social das doenças e organização social do serviços de saúde. Em outros termos, o esforço teórico de construção da saúde coletiva não ocorreu senão num contexto político bastante específico: o modelo médico que se criticava e estava sendo construído através de políticas públicas, e favoreciam (pelo menos era essa a leitura) o setor privado e a acumulação de capital no setor, em detrimento das reais necessidades de saúde da população.
Todo o esforço teórico se engajava na luta por transformar as políticas de saúde então vigentes. E não só as políticas de saúde. O esforço teórico articulava-se na luta pela democratização do país, e pela construção de uma sociedade mais justa. Portanto, tratava-se de afirmar um lugar privilegiado da saúde coletiva para a formulação de políticas de saúde numa sociedade democrática, que se queria construir. Talvez tenha sido a influência da produção de conhecimento na área na elaboração de propostas de política alternativa, tanto no que diz respeito à configuração de um novo sistema de saúde, como no que se refere à produção de argumentos que permitiriam granjear o apoio significativo de outros atores sociais compromissados com a redemocratização do país. É nesse sentido que é inequívoca a importância que a saúde coletiva adquiriu na reforma sanitária. É nesse sentido que se poderia dizer que a reforma sanitária brasileira é um processo de reforma tecnicamente fundado, e que é fundado nos conhecimentos da saúde coletiva. [1] Este notas fazem parte do relatório de pesquisa: LEVCOVITZ, E.; BAPTISTA, T.W.F.; UCHOA, S.A..; MARIANI, M.; NESPOLI, G. Saberes e Políticas: a contribuição do campo da saúde coletiva na organização da política de saúde brasileira. Rio de Janeiro, Série Estudos em Saúde Coletiva. Edição Especial – Relatório de Pesquisa. Setembro de 2000. BIBLIOGRAFIA COMPLEMETAR PAIM, J. & ALMEIDA FILHO, N. Movimentos no campo social da saúde. In: PAIM, J. & ALMEIDA FILHO, N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador, Casa de Qualidade Editora, 2000, pp. 33-48.
23 de abr. de 2008
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Um comentário:
Gostaria de parabenizar aos membros discentes do LabSUS pela iniciativa de criar este espaço que certamente contribuirá para um novo modo de organização do processo de trabalho em saúde que enfatiza a promoção da saúde, a prevenção de riscos e agravos, a reorientação da assitencia e melhoria da qualidade de vida da nossa populaçao. Abraços,professora Maristela
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